A contagem de multidões é algo difícil e polêmico, já que a quantidade de participantes é uma forma de medir a relevância do evento. Quem organiza o evento tem estímulo para superestimar o número. A polícia, por sua vez, costuma subestimar o número.
O que fazer? Chamar um terceiro, que não esteja diretamente envolvido nem com a polícia, nem com a organização do evento. Por exemplo, um órgão de universidade (como o Coppe/UFRJ) ou um instituto de estatística (como o Datafolha).
Há diversos métodos para se medir uma multidão. O mais conhecido foi criado por um professor universitário de jornalismo, Herbert Jacobs, nos anos 60 – e por isso é conhecido como “método de Jacobs”.
É simples: calcule a área do local, estime o número de pessoas por m², e multiplique os dois números. As pessoas se concentram de forma desigual? Então leve isso em conta. É isso que o Datafolha faz:
Profissionais do instituto percorrem toda a área da manifestação e avaliam o número de pessoas por metro quadrado em cada setor. Posteriormente as informações são reunidas em um mapa do local para a realização do cálculo relacionando as diferentes densidades com a área total.
Há métodos mais sofisticados que usam o mesmo princípio. Na manifestação de segunda-feira no Rio de Janeiro, uma equipe do instituto de pesquisa Coppe/UFRJ usou imagens de televisão, programas de computador e bom senso para estimar quantos manifestantes foram às ruas. O G1 explica:
Em dois monitores alinhados, especialistas da Coppe emparelham imagens diferentes de um mesmo lugar, no caso a Avenida Rio Branco: uma de satélite e outra filmada por um helicóptero. Na primeira, calcula a dimensão da área. Na outra, desenha o que chamam de “manchas” humanas, de acordo com a quantidade de pessoas. Por fim, compara as duas para saber o quanto desta área foi ocupada.
Ou seja, primeiro eles obtêm a área, depois a concentração de pessoas, e – após alguns ajustes – calcula-se o número total de pessoas, que ficou entre 80 mil e 100 mil pessoas no Rio de Janeiro.
Os métodos podem ser ainda mais sofisticados. Para um evento político nos EUA em 2010, usou-se um balão cativo para tirar fotos de 360° da multidão a altitudes diferentes. Com as fotos, criou-se um mapa 3D, dividido em quadrados, e contou-se o número de pessoas em alguns quadrados – não todos. Dessa forma, você consegue estimar a concentração de pessoas em certas áreas e, supondo que ela é igual em outras áreas, você calcula o número total de participantes.
Havia quantas pessoas no protesto, afinal?
Com o método de Jacobs, também é possível estimar a lotação máxima de um espaço público. Medir a área é relativamente fácil: em locais como a Avenida Paulista ou Faria Lima – onde começou a manifestação de segunda-feira – você multiplica a extensão da via por sua largura.
Isso pode superestimar a área que pessoas ocupariam, já que o número engloba áreas tomadas por bancas de jornal, postes e canteiros. No entanto, como as vias são basicamente retas e sua largura varia muito pouco em diferentes pontos, é uma boa estimativa.
O desafio maior é estimar a concentração de pessoas, mas estudiosos têm números para cada caso. Moacyr Duarte, pesquisador sênior do Coppe/UFRJ, explica ao G1:
Em multidões comprimidas, [eles] contam cinco pessoas por metro quadrado. Quatro, se as pessoas se movimentam. Três, se o grupo está caminhando.
Então fizemos o cálculo para estimar quantos manifestantes se concentraram na Faria Lima durante o protesto de segunda-feira. Segundo Folha e G1, os manifestantes se concentraram entre o Largo da Batata e a avenida Juscelino Kubitschek. E considerando o que nossa equipe viu lá, além do relato de terceiros e o próprio vídeo da Folha – mostrando com um drone a visão aérea da avenida – a Faria Lima realmente estava lotada entre esses dois pontos.
São 2,9 km de avenida entre os dois pontos, como é possível ver no Google Maps. E a avenida tem 40 m de largura. Ou seja, temos uma área estimada de 116.000 m² ocupada por manifestantes.
Multiplicando a área pela concentração de pessoas – entre 3 e 5 pessoas por m² – temos que a lotação máxima da área ocupada pelos manifestantes está entre 348 mil e 580 mil. Isso é muito mais do que a estimativa inicial da Folha, que considerava só a concentração inicial.
Robinson dos Santos, jornalista e formado em matemática na USP (Universidade de São Paulo), corrobora os cálculos, mas lembra a importância de haver pessoas na multidão para medir a concentração de pessoas:
Essa estimativa é aprimorada pela utilização de observadores que avaliam quadrantes do espaço ocupado – e atribuem a cada quadrante um porcentual de ocupação. Sem os observadores, nossa estimativa fica um pouco mais fraca, porém ainda funcional.
Gustavo Venturi, sociólogo que dirigiu o Datafolha entre 1992 e 1996, diz que os cálculos são razoáveis como critério genérico, e destaca que é importante deixar claro, sempre, o momento em que a medida é feita:
A outra variável importante é a questão do momento da medida: em geral só é possível calcular a concentração em cada vez que se toma uma medida, e não calcular quantas pessoas compareceram ao longo de um ato, seja de concentração ou de caminhada, uma vez que normalmente os atos públicos têm várias entradas/saídas.
E esse é um detalhe importante, deixado de lado pelo Datafolha: nossas contas dizem respeito apenas a Avenida Faria Lima, uma das vias tomadas por protestos — enquanto a avenida estava tomada de manifestantes, outra grande quantidade de pessoas estavam em diversas outras vias: Marginal Pinheiros, Ponte Estaiada, Rua Brigadeiro Faria Lima, Avenida Rebouças e Avenida Paulista também tiveram enorme fluxo de manifestantes.
Tentando corrigir o erro
Na quarta-feira, a Folha publicou texto intitulado “Entenda como o Datafolha calcula multidões”, e já no começo reconhece que a estimativa de 65 mil não valia para o protesto inteiro:
O Datafolha calcula o número de manifestantes do Movimento Passe Livre apenas durante a concentração inicial dos protestos realizados nesta semana… nas duas últimas passeatas foram calculados os públicos apenas antes de iniciadas as passeatas.
Então quantos foram no total? O Datafolha explica que não conseguiu fazer tal medição, porque a passeata não teve trajeto definido, e eles não têm método para esse caso.
No entanto, eles conseguiram dar uma estimativa em outra manifestação em São Paulo, no dia 20/06, durante a comemoração pela redução da tarifa de ônibus, de R$ 3,20 para R$ 3. Na sexta-feira, eis o que a Folha publicou:
Às 20h, 110 mil pessoas estavam na avenida [Paulista], segundo o Datafolha. O cálculo é feito com base no público concentrado na Paulista e não no deslocamento dos manifestantes. Por isso, é possível que o número tenha aumentado ao longo do percurso.
Desta vez, a Folha deixa claro não só como estimou a multidão, mas o horário em que isso foi feito. Durante a manifestação em São Paulo na segunda-feira, eles não tomaram esse cuidado.
Mais cuidado da próxima vez
Nós entendemos a dificuldade de medir uma multidão em um protesto que não tem trajeto predefinido. Em eventos como a Marcha para Jesus ou a Parada Gay, é possível distribuir pesquisadores por setor ao longo do trajeto: eles anotam a concentração de pessoas em cada setor, e fazem isso em intervalos regulares.
Em manifestações, planejar algo do tipo é bem mais complicado: mesmo que haja um trajeto esperado, ele pode mudar – na segunda-feira, parte dos manifestantes foram pela Av. Rebouças, em vez de seguir pela Faria Lima. Sabendo dessas dificuldades, a Folha deveria ter tomado mais cuidado ao cravar um número que correu o mundo — e subestimou uma enorme movimentação popular.
Portanto, os protestos requerem uma técnica mais precisa de medição, o que falta em muitos lugares do país: nem em São Paulo tínhamos um instituto para estimar direito quantas pessoas ocupavam as ruas. Precisamos de mais envolvidos no cálculo de multidões, e de técnicas mais avançadas para tanto. Afinal, esta é uma das formas de deixar na História o peso e relevância das manifestações que tomaram o Brasil.
Fonte:
Gizmodo Uol, Giovanni Santa Rosa e Leo Martins colaboraram com a reportagem. Foto, algumas de por Beraldo Leal/Flickr e Google
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